quinta-feira, 2 de abril de 2015

MENTALIDADES CRIMINOSAS - Por Sydnei Melo

A questão do apoio à redução da maioridade penal representa um problema muito mais grave do que nós, contrários a esta medida, estamos imaginando. Em grande parte, os argumentos contrários à redução da maioridade penal, legítimos e consistentes em sua maioria, buscam trazer referências mais amplas para o tratamento do problema da criminalidade juvenil. Quais os problemas sociais envolvidos? Que impactos sobre essa juventude estão relacionados à deficiência de nosso sistema educacional? Há uma quantidade expressiva de argumentos anti-redução embasadas em estudos científicos sólidos. Em um espaço tão aberto à difusão de boatos absurdos, como é o caso das redes sociais, é interessante notar a preocupação dos críticos da redução da maioridade penal em esclarecer suas fontes e sua preocupação com a complexidade do problema da criminalidade entre menores de 18 anos. Mas há uma questão pouco tratada neste momento: qual a relevância de uma análise sociológica, histórica, política, etc, para alguém que defende ardorosamente a tese da redução da maioridade? Em grande parte, a defesa da redução da maioridade penal não é fundada em argumentos científicos, dados, ou quaisquer outras fontes de pesquisa que expliquem claramente a real situação da criminalidade juvenil. Pouco importa saber que a tendência entre os países democráticos seja a de estabelecimento da idade mínima penal em 18 anos (em alguns casos, de ampliação para 21). Não importa, também, saber que o índice de crimes cometidos por menores no Brasil não alcança 1% do conjunto total de crimes cometidos no país. Ouvir os deputados defensores da redução, e alguns de seus entusiastas, falarem em "endurecimento" das leis como forma de coibir a criminalidade juvenil, soa como piada. A questão é simples: muitos que defendem a redução da maioridade penal não estão preocupados com a redução da criminalidade, mas com a forma da punição daqueles que o cometem. Assim, pouco importa a criação de medidas educacionais e investimento em formação cultural. A coisa é mais simples, e não depende de reflexão aprofundada: a decisão de cometer um crime é explicitamente individual. É a negação da vida social. Pobreza e ausência de oportunidades não é desculpa. É o cúmulo do individualismo. Além disso, a situação calamitosa dos presídios brasileiros, inundados pelos poder do crime organizado e pela conivência igualmente criminosa do poder público, não é uma dificuldade, mas um ideal. São os presídios brasileiros quase representações do holocausto? Que permaneçam assim, pois é o ambiente ao qual aquele que comete um crime deve se submeter. Pra muitos destes, prisão não é uma ambiente de ressocialização, mas de punição, castigo, de preferência cruel: é o preço a se pagar pela infração da lei. Assim, antes mesmo de lidarmos com a busca por respostas sociológicas e históricas sobre as raízes da criminalidade e as possíveis soluções à ela, temos um problema anterior: a forma como enxergamos o outro, como definimos o que é humano, e como reconhecemos o direito daquele que é diferente. Vivemos em uma sociedade que comporta uma parcela expressiva de grupos sociais que se julgam superiores e mais humanos do que outros, e que aceitaria de bom grado a existência de um estado policialesco onde não apenas o recrudescimento das leis seria uma resposta "suficiente" à criminalidade, como também os mecanismos de punição deveriam fazer jus a uma realidade de terror, a constituição de um inferno na terra, tida como merecida àqueles que infringem a lei. Dane-se se as prisões hoje mais estimulam do que impedem a criminalidade - desde que o castigo seja duro e cruel. Há algo de extremamente problemático na educação da população brasileira. A naturalização deste grau de violência não deveria ser comum em uma democracia. Isso mostra como a sociedade brasileira não é pacífica. O desafio que se impõe, antes ou paralelamente à problematização das raízes da criminalidade, é o de reconstruir a matriz de valores em que se embasa aqueles que se julgam alheios à criminalidade, cumpridores das leis, trabalhadores, mas de mentalidade tão cruel e criminosa quanto comportam muitos daqueles que infringem as leis penais brasileiras. Sydnei Melo, 27, é cientista social e mestre em Ciência Política (IFCH/UNICAMP).