segunda-feira, 27 de outubro de 2014

SOU FILHO DE UMA ALAGOANA E NETO DE SERGIPANOS E TENHO ORGULHO DESSA GENTE - Por Sydnei Melo

Sou filho de uma alagoana e de um paulista que, por sua vez, é filho de uma sergipana. Minhas raízes tangem as margens do São Francisco. Aquele rio é lindo. É uma das coisas mais bonitas que já vi na vida. Uma vez, tive a oportunidade de tomar uma barca e navegar por umas duas horas e meia, talvez um pouco mais, até chegar em uma vila, a Ilha de São Pedro. É uma demarcação. Ali vivem xocós, um grupo indígena. Os traços não são exatamente de índios como estamos acostumados a ver - especialmente por suas relações com grupos quilombolas, comuns na região - e a aldeia é razoavelmente urbanizada. Mas afinal, índio não é índio porque tem olho puxado e anda de tanga. Índio é índio por que se reivindica como tal, porque se enraíza em sua terra, porque constrói essa identidade. Meu bisavô paterno viveu ali, e teve seus filhos. Entre eles, meu avô. Naquele sertão de Porto da Folha, não enxergava muito futuro. Tinha que descer. Casou, e veio com minha avó pra São Paulo. Chegaram praticamente sem nada. Cuidaram dos dois primeiros filhos - o segundo era meu pai - em uma construção inacabada. Foram melhorando de vida pouco a pouco, sempre com as dificuldades de quem sai de trás da linha de partida enquanto tentam te iludir dizendo que "todos são iguais perante a lei". Meu avô era pau pra toda obra: foi motorista, taxista, pedreiro, isso pelo que me lembro. Fez de tudo um pouco. E até hoje, na casa dos 70, não se imagina sem fazer um esforço: "trabalhar é bom", diria ele. Minha mãe tinha um ano e meio quando veio carregada pra São Paulo. Se chorava ou sorria, provavelmente não sabia porque. A conta era ela e mais treze: mãe, pai, tios, irmão - tudo em família, se enfiando em um ônibus, tipo desses que até hoje carregam boias-frias por aí. 14 dias de viagem desde Limoeiro até chegar em Suzano, onde viveria parte da infância. Meu avô materno se tornou caminhoneiro, e ao que me consta minha avó - que faleceu antes de eu aparecer na história - era dona de casa. Não conheci minha avó materna, mas aprendi uma coisa com ela (ou melhor, deveria ter aprendido): a gente pode ser pobre, mas tem que ser limpinho. Minha mãe fez estágio com ela. Deve ser por isso que, quando eu tinha 7 anos, já me botava pra lavar o banheiro de casa. As duas famílias vieram pra SP nos idos de 1960. Eram tempos de forte tensão política. Meu pais nasceram um ano depois do golpe. Diz meu pai, mais especificamente, acreditar que metade de seus amigos de infância, em duros tempos no Capão Redondo, morreram antes de completar os dezoito anos. Se a polícia baixa o cacete na negrada da periferia até hoje, imagina o que fazia quando não existia democracia no país. Meus avós, dos dois lados, trabalharam muito. Labutaram para conseguir transmitir um mínimo de cidadania e incutir na cabeça de meu pai e minha mãe um básico sobre a reivindicação de suas dignidades. Ninguém teve vida fácil. Fizeram parte, assim, da leva de trabalhadores nordestinos que desceram para baixo dos trópicos não apenas naquela década, mas praticamente nos últimos quarenta anos. Ajudaram a formar vilas e bairros que, hoje, são praticamente redutos nordestinos na cidade. Redutos, porém, distantes: nos prédios da Avenida Paulista não havia espaço pra plebe que não fosse aquele garantido pelo martelo e pela britadeira. A possibilidade era um trabalho. A segurança e o salário digno, outros quinhentos. Eram três horas de trânsito e transporte público apertado. A periferia tinha sotaque do norte. E que ficasse ali. A história da construção de SP é a história do papel fundamental dos migrantes neste processo. Estrangeiros foram vários, de japoneses a italianos. Mas veio gente de dentro do país também. Do nordeste. Muita gente do nordeste, que trabalhou muito e trabalha muito até hoje. Gente pra caramba. Encerradas as apurações que determinaram o quarto mandato petista no governo federal, perceber que, mesmo entre as pessoas que vejo circular nas redes e com as quais tenho alguma relação, há uma nível bárbaro de estupidez que permeia a visão dos "enlutados" em relação aos nordestinos - ou melhor, à "cambada de preguiçosos que vota no PT por causa do bolsa-família" - é assustador. Não sinto que é apenas uma ofensa contra "os nordestinos". É uma ofensa contra eu, meu irmão, minha família, minha história e a história de uma população muito expressiva que, entre tantas outras, foi espoliada por governantes, empresários e toda uma burguesia tropical que marca o estado de SP e sua aguda vocação para a exploração da mão-de-obra alheia. Meu sangue ferve. Sangue sertanejo, fundado no pó da terra seca, vivido por gente de luta e que derramou muito suor para garantir, por exemplo, que eu, hoje, tivesse condição de trabalhar, estudar e, consequentemente, contribuir para que mais pessoas consigam enxergar um horizonte de perspectivas para suas vidas. Para muitos destes que declamam sentimentos xenófobos, acredito mesmo, existe a chance da persuasão. O debate e a disputa de consciência é fundamental. Porque preconceito não nasce com a gente, preconceito se aprende. E se desconstrói também. Mas contra outros, especialmente os fascistas, só é possível proceder ao bom combate - regulamentando as punições, reduzindo seus espaços, tornando-os vozes solitárias. E não podemos ser românticos: a humanidade tem uma incrível capacidade pra fazer idiotices. Homens e mulheres do tipo que gosta de destituir miseráveis de sua humanidade, existem aos montes. A batalha contra estes é dura. Esta é parte da minha história. E me orgulho dela. Sydnei Melo é Cientista Social http://sydnei-melo.blogspot.com.br/2014/10/sou-filho-de-uma-alagoana-e-de-um.html

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